sábado, março 25, 2006

Monólogo das mãos


Para que servem as mãos? As mãos servem para pedir, prometer, chamar, conceder, ameaçar, suplicar, exigir, acariciar, recusar, interrogar, admirar, confessar, calcular, comandar, injuriar, incitar, teimar, encorajar, acusar, condenar, absolver, perdoar, desprezar, desafiar, aplaudir, reger, benzer, humilhar, reconciliar, exaltar, construir, trabalhar, escrever...... As mãos de Maria Antonieta, ao receber o beijo de Mirabeau, salvou o trono da França e apagou a auréola do famoso revolucionário; Múcio Cévola queimou a mão que, por engano não matou Porcena; foi com as mãos que Jesus amparou Madalena; com as mãos David agitou a funda que matou Golias; as mãos dos Césares romanos decidiam a sorte dos gladiadores vencidos na arena; Pilatos lavou as mãos para limpar a consciência; os anti-semitas marcavam a porta dos judeus com as mãos vermelhas como signo de morte! Foi com as mãos que Judas pôs ao pescoço o laço que os outros Judas não encontram. A mão serve para o herói empunhar a espada e o carrasco, a corda; o operário construir e o burguês destruir; o bom amparar e o justo punir; o amante acariciar e o ladrão roubar; o honesto trabalhar e o viciado jogar. Com as mãos atira-se um beijo ou uma pedra, uma flor ou uma granada, uma esmola ou uma bomba! Com as mãos o agricultor semeia e o anarquista incendeia! As mãos fazem os salva-vidas e os canhões; os remédios e os venenos; os bálsamos e os instrumentos de tortura, a arma que fere e o bisturi que salva. Com as mãos tapamos os olhos para não ver, e com elas protegemos a vista para ver melhor. Os olhos dos cegos são as mãos. As mãos na agulheta do submarino levam o homem para o fundo como os peixes; no volante da aeronave atiram-nos para as alturas como os pássaros. O autor do "Homo Rebus" lembra que a mão foi o primeiro prato para o alimento e o primeiro copo para a bebida; a primeira almofada para repousar a cabeça, a primeira arma e a primeira linguagem. Esfregando dois ramos, conseguiram-se as chamas. A mão aberta,acariciando, mostra a bondade; fechada e levantada mostra a força e o poder; empunha a espada a pena e a cruz! Modela os mármores e os bronzes; da cor às telas e concretiza os sonhos do pensamento e da fantasia nas formas eternas da beleza. Humilde e poderosa no trabalho, cria a riqueza; doce e piedosa nos afetos medica as chagas, conforta os aflitos e protege os fracos. O aperto de duas mãos pode ser a mais sincera confissão de amor, o melhor pacto de amizade ou um juramento de felicidade. O noivo para casar-se pede a mão de sua amada; Jesus abençoava com a s mãos; as mães protegem os filhos cobrindo-lhes com as mãos as cabeças inocentes. Nas despedidas, a gente parte, mas a mão fica, ainda por muito tempo agitando o lenço no ar. Com as mãos limpamos as nossas lágrimas e as lágrimas alheias. E nos dois extremos da vida, quando abrimos os olhos para o mundo e quando os fechamos para sempre ainda as mãos prevalecem. Quando nascemos, para nos levar a carícia do primeiro beijo, são as mãos maternas que nos seguram o corpo pequenino. E no fim da vida, quando os olhos fecham e o coração pára, o corpo gela e os sentidos desaparecem, são as mãos, ainda brancas de cera que continuam na morte as funções da vida. E as mãos dos amigos nos conduzem... E as mãos dos coveiros nos enterram!

Ghiaroni

O que será (à flor da pele)

O que será que me dá?
Que me bole no peito,
Que será que me dá?
Que brota à flor da pele,
Que será que me dá?
E que me sobe às faces
e me faz curar;
E que me salta aos olhos a me atraiçoar;
E que me aperta o peito e me faz confessar;
O que não tem mais jeito de dissimular;
E que não é direito ninguém recusar;
E que me faz mendigo, me faz implorar;
O que não tem medida nem nunca terá;
O que não tem remédio nem nunca terá;
O que não tem receita.

O que será; que será?
Que dá dentro da gente e não devia;
Que desacata a gente ter revelia;
Que é feito uma aguardente que não sacia;
Que é feito estar doente de uma folia;
Que nem dez mandamentos vão conciliar;
Nem todos os ungüentos vão aliviar;
Nem todos os quebrantos, toda alquimia;
Que nem todos os Santos,
Que será; o que será?
O que não tem descanso nem nunca terá;
O que não tem cansaço nem nunca terá;
O que não tem limite.

O que será que me dá?
Que me queima por dentro,
O que será que me dá?
Que me perturba o sono,
O que será que me dá?
Que todos os ardores me vêm atiçar;
Que todos os tremores me vêm agitar;
E todos os suores me vêm encharcar;
E todos os meus nervos estão a rodar;
E todos os meus órgãos estão a clamar;
E uma aflição medonha me faz suplicar;
O que não tem vergonha nem nunca terá;
O que não tem governo nem nunca terá;
O que não tem juízo.

Chico Buarque

Olhos - nuvens - oceano

Fecham-se as janelas, óbvio.
Chovem tempestades, vejo,
Doem no soluço meus desejos,
Guardo dos teus beijos a saudade.
Neste inverno de águas salgadas,
Cartas marcadas e marcas eternas...

Feridas, lágrimas, dúvidas,
Partidas, mágicas, dívidas.

Vaga a embarcação como vaga minh’alma:
Sem direção nem sentido;
E o horizonte se desdobra entre as ondas,
E a esperança entre as pedras, abrigo;

Caudalosas correntes que me prendem,
Dos fantasmas espelhados que arrodeiam-me de perto.
Sou reflexo, luz vagante nos tormentos,
Nas paixões celestiais sou sofrimento,
Entre mares e oceanos sou deserto.

Acróstico de meu íntimo...


Pelos cantos de minh’alma empoeirada,
Encontro o menino que outrora pintava traços sem sentido –
Sabia ele que era a vida aquelas formas vivas e livres no papel.
A sua face triste e desbotada revelava o fim do seu sonho
De criança – um sonho vívido como as cores que manchavam toda
Esta sala, quando o “puro” e o “real” ainda faziam sentido.
Logo vi que os papéis e as tintas haviam acabado, e que
O menino era eu.

Debrucei-me sobre o garoto e beijei seus cabelos.
Ele não retribuiu.

Cada palavra, cada olhar; tudo parecia
Ridículo para ele...
Indiferente à minha presença,
Alcançou um pedaço de sonho, e
Na maturidade inda cedo adquirida, pôs-se a chorar como adulto. Ca-
Çou em meus olhos um lugar de segurança,
A linha de remorso por minha culpa admitida...

Sorriu desapontado ao me ver em preto e branco,
Olhando firmemente para um homem sem futuro;
Negava envergonhado a criança aprisionada, no
Homem que hoje sou, mentalmente imaturo;
Ouvindo em silêncio os lamentos de um poeta.

Debilmente confortado pelo último suspiro,
Ergueu-se de seu corpo toda breve e doce infância,

Unindo em pensamento nosso único destino,
Meu “hoje” se resume a perder as esperanças.

Partiu aliviado para o mundo dos pequenos,
Onde fica a nossa “íntima criança” desprezada.
Esta frágil, surda e impotente criatura,
Tantas vezes sequer compreendida,
A verdade na inocência disfarçada.

domingo, março 19, 2006

Registro de um curto espaço de tempo...

Farta-me de tuas lembranças, amor, banha-me em tuas lágrimas puras, puramente indesejadas.
Caminhar junto ao nada, num caminho vazio, sem norte, sem sorte. Eis o destino de quem se deixa sucumbir ao destino, circunstâncias e sofrimento. São conseqüências de outras conseqüências, palavras mudas a provar o gosto silencioso de um olhar, em declarações que não mais podem ser ditas; rios de tormentos e águas traiçoeiras.
Desertos e caravanas preenchem a essência, seca, absoluta e amarga. Algo queima meu peito, dissolve minhas certezas, lança-me à condição de servo, sedento de teu suor e saliva.
Talvez o esquecimento, cura melancólica, adquira um significado de aceitação incerta, pois tudo no mundo é desprovido de certezas. Nega a identidade, finge garra e fortaleza, mas deixa-se vencer, se trair por cartas e retratos. Eis a essência do homem: quando ama, a carne subjuga-se à alma.
Deixo as águas lavarem, levarem-me de novo ao encontro; outros caminhos, outras palavras, diferentes escadas rumo aos céus do ser, e dividem o mesmo sentimento; iludem-se ao viver o amor nas lembranças...
Beijam-te outras bocas, envolve em outros braços teu corpo...
Jamais terão o mundo e o amor que te dei.


D.Lordelo, 17/03/06

sábado, março 04, 2006

Poema de mais de um tema

Escrevo de fome,
De lobo-solitário nas tardes,
Nas febres cotidianas das paixões,
Nos jardins empoeirados das cidades,
Nos campos ressecados dos verões.

Escrevo de medo,
Das tintas frescas da saudade,
Do conselho estúpido dos sábios
ou da beleza impalpável do amor;
Desigualdades que se encontram nas verdades,
E se entendem ao leve toque dos lábios.

Medo do terrível, do terreno, do desgaste,
Medo dos poetas, do relógio, do desgosto.

Canto o silêncio tranqüilo das noites,
Bebo a galáxia extensa em meus sonhos,
Nos contos-de-fadas sou vento e deserto.
E escrevo, e viajo, e fujo,
Ora longe estou perto,
Andarilho dos vales celestes,
Nos poemas da alma, sou forte.
Sinto que me devo respostas,
Que sozinho e calado sou mundo,
Mas sozinho no mundo, sou morte.


D. Lordelo
03/03/2006